O que Funciona na Prática Clínica da Psicoterapia
Reflexão sobre o papel da Psicoterapia
no mundo contemporâneo.
Para contextualizar esta II Segunda Jornada da ABRAP em seu tema: o que Funciona na Prática Clínica da Psicoterapia, eu preciso explicar o seu processo de origem.
Em outubro de 2001 o então Departamento de Psicodinâmica do Instituto Sedes Sapientiae, apoiado pelo Departamento de Psicoterapia da ABP organizou sua jornada convidando diferentes escolas e linhas de estudo, com a finalidade de discutir como se entendia o clínico em Psicoterapia no início da 1ª década do século XXI.
Foi um evento em que várias linhas psicoterapêuticas e epistemológicas, se propuseram a refletir, em conjunto, sobre os objetivos e resultados do nosso trabalho com a mudança de paradigmas que se passava a viver.
O atentado de 11 de setembro, de forma rápida, brusca e violenta, acelerou as mudanças dos referenciais ideológicos em relação aos aspectos econômicos, políticos, científicos, sociais / relacionais, e da religiosidade. E a nossa busca comum passou a ser tentar desenvolver novas formas de propiciar alívio ao sofrimento humano diante das mudanças reais que já vinham acontecendo, e que tomavam rumos mais ortodoxos / fundamentalistas.
Na época, os nossos questionamentos pretendiam determinar como ficaria este Ser Humano, no nosso caso o paciente / cliente; como ficaria o profissional; e como ficariam os quadros clínicos e a Psicoterapia.
Constatamos que vivíamos um momento no qual a dessacralização pós-moderna estava presente mudando os conceitos. E isso exigiria reflexão crítica e reconhecimento sobre como os valores científicos, políticos, socioeconômicos religiosos e culturais, conscientes ou inconscientes, estariam misturados em nossos modelos teórico / clínicos, portanto: como interagiam em nossa subjetividade.
As questões e as consequentes reflexões de diferentes profissionais, de diferentes linhas, estavam direcionadas para preocupações em relação às queixas do vazio interior e do isolamento, que já aconteciam a partir da estimulação da cultura através de uma idealização narcísica do bem estar, crescimento e felicidade.
A banalização dos sentimentos, ou seja da percepção da visão crítica sobre a realidade, promovida tanto pela medicalização das emoções, pelas drogas não lícitas, quanto pela alienação através de comportamentos obsessivos tais como jogo, comida, sexo e internet, apresentavam-se como evidências de adoecimento em Saúde Mental de parcelas expressivas da população.
A massificação vivencial como fenômeno coletivo da realidade humana influenciada pelos meios de comunicação, promovia uma experiência existencial relacional artificial grupal, com emoções padronizadas como respostas mercadológicas de um marketing planejado.
Nós não caracterizávamos a contemporaneidade como um quadro pessimista da realidade, mas sim, como um evidente agente destas influências em nossas vidas pessoais e nas vidas de nossos pacientes.
Concluímos que o trabalho clínico sempre dependeria de nosso conhecimento teórico, da nossa intuição e capacidade de improvisar, e que sempre se manteria na linha divisória, ou interface, entre o nosso diagnóstico e a intervenção praticada a partir da nossa sensibilidade e subjetividade, ao que denominamos o “universo da arte”.
Nesse sentido, a reflexão sobre “O que Funciona em Psicoterapia” continua a ter grande importância. E pensando no hoje, vejo que relatamos todos estes questionamentos, mas ainda não conseguimos enunciar o seguinte paradoxo: os pacientes eram, e ainda são, pessoas saudáveis (ou, “estabilizadas” ou “pessoas normais”), ante uma situação anormal, incontrolável e que se torna cotidiana.
Cada vez mais, o desamparo criado por essas mudanças de paradigmas, está presente no cotidiano dos pacientes, e consequentemente, na rotina dos profissionais da área Saúde Mental.
A cultura atual continuou acentuadamente narcísica, individualista, imediatista, consumista, superficial e artificial, firmando sua autoestima em bens posicionais, portanto cada vez mais distante de sua interioridade. Para suportar conviver com o que não é natural ou anti-humano (pais que matam filhos, mulheres que picam maridos, maridos que mandam executar mulheres, filhos que matam pais, sequestros, aceitação de mentiras políticas e econômicas, sociais, catástrofes naturais), utilizamos a negação, sob a forma da banalização, fazendo de conta que estamos blindados contra estas violências e agressões, que também podemos entender em senso lato, metaforicamente, como formas de estupros e abusos. Criamos mecanismos onipotentes diante da impotência ou desamparo humano.
Vivemos na era em que provavelmente muito daquilo que sempre soubemos e defendemos esta sendo ou será comprovado cientificamente. Comprovamos hoje o cérebro emocional. E também, através dos estudos atuais sobre a integração da relação gene / ambiente / cérebro, comprovamos a existência de alterações da experiência subjetiva.
Nossa jornada visa lidar com as relações entre a psicoterapia e as diversas situações científico / políticas / econômicas / sociais e ou relacionais e ambientais, que afetam a vida do ser humano, tanto no plano individual, quanto no plano profissional e coletivamente, enquanto sociedade.
Durante a última década houve uma evolução das psicoterapias com atuações em situações traumatogênicas provocadas pelas diferentes formas manifestas da violência, ou seja, através de guerras, terrorismo internacional e do Estado, mudanças na organização familiar, política, da natureza, e outras. Portanto devido às próprias transformações ocorridas em todas essas áreas de relação humana.
A psicoterapia deixou de ser aplicada somente em consultório. Foi a campo, se descobriu e obteve êxito ao atuar em diferentes situações. Num setting diferente, em que também as relações profissionais se estabeleceram em uma forma diferente de enquadres, mas, mesmo assim, mantendo os conceitos que a solidificam e validam.
Os clientes / pacientes passaram a trazer para o consultório diversas ansiedades e angústias advindas de situações ligadas ao traumatogênico social e midiático. E, muitas vezes, permanecem distanciados da percepção de seu próprio SER, e tendem a não mais reconhecer, ou simplesmente negar, as suas melhores qualidades individuais e humanas.
Sou eu que estou doente ou a sociedade que está adoecendo?
Eu estou delirando ou eu compreendo a verdade que é negada?
Esses são alguns questionamentos frequentes dos “supostos” pacientes. E nós, psicoterapeutas: Devemos concordar com o que eles observam, interpretam e nos relatam, ou o procedimento será compreender o relato através da escuta focada apenas no diagnóstico de sintomas?
Essas pessoas (pacientes) trazem em suas dúvidas, sentimentos que fazem parte da condição do humano. Ou são somente sintomas que caracterizam transtornos?
Nós, profissionais em Saúde Mental, mas também seres humanos também, deveremos nos identificar com suas questões, refletirmos, sem a aplicação de ideologias político / sociais, mas sim humanísticas / científicas, e medicar se necessário. Ou o caminho a seguir será apenas interpretarmos sintomas, e medicar? Nesses casos, drogando também os sentimentos?
A nossa jornada ABRAP foi planejada a partir desse tema, para nos incentivar à refletir sobre o que se tem feito na área da Psicoterapia, sua evolução e adaptação às citadas circunstancias atuais. E eu volto a afirmar: atualmente, estamos atendendo uma parcela crescente de pessoas sãs, que se desestabilizam ou se desorganizam também pela ação da realidade.
A nossa reflexão poderá ser feita através da diferenciação sobre o que é Saúde e Saúde Mental, de fato, portanto: Qualidade de vida, e o uso da mesma terminologia (SeSM) aplicada à doenças e tratamentos.
Inicialmente, décadas de 60 e 70, o campo clínico da SeSM, era compreendido dentro dos referenciais Bioéticos que tratam das relações entre tratamentos de doenças, profissionais e pacientes, e suas interações em relação aos aspectos técnicos e jurídicos ou do Direito.
Porém, surgiu a percepção de que estes princípios da Bioética, postulados como Ética Global, se desvirtuaram em parte, a partir da própria abrangência que se pretendeu atribuir a eles. E em função destes princípios estarem circunscritos ao mundo das doenças e das relações entre profissionais e pacientes.
Com o tempo, princípios terminaram reduzidos a protocolos e legislação aplicados aos relacionamentos comerciais – por vezes influenciados por interesses de seguradoras e laboratórios, e portanto, perdendo muito do seu sentido original. E avaliadas por essa perspectiva, SeSM se tornaram “reféns” dos protocolos instituídos pelas regras mercadológicas ditadas por essa “globalização comercial técnica”, que muitas vezes, influencia inclusive as instituições acadêmicas.
O aporte dos estudos desenvolvidos por Dr. Moty Benyakar nas últimas três décadas serve como pilar referencial para as reflexões contemporâneas sobre o papel da Psiquiatria e Psicologia na Saúde Mental contemporânea, diante das necessidades de atendimento da sociedade globalizada.
Nessa proposta de mudança de paradigmas, os princípios aplicados de forma global e sistêmica, devem considerar as diferentes necessidades que se interligam, simultaneamente, para proporcionar a existência saudável dos seres humanos no mundo que os rodeia. E com esse direcionamento ideológico, o Dr. Benyakar apresentou, junto cátedra de Bio-etica da UNESCO, a postulação do conceito Ecobioética, para a compreensão da Saúde Mental como apoio e suporte permanente à população.
O conceito de Ecobioética confronta as relações do homem com o próprio homem, assim como do homem com o meio ambiente em que ele vive, incluindo-se não só animais vegetais e minerais, como também os fenômenos geofísicos, para promover um desenvolvimento saudável, amparado no seu tempo e sustentável. E em sua postulação, Benyakar afirma: ”a Ecobioética se propõe a ir além de uma disciplina apoiada somente em medicina e direito, para assumir a postura de integração entre todas as disciplinas que participam da vida dos indivíduos, tais como economia, política, educação, ecologia, filosofia, urbanismo , comunicação social, engenharia, entre tantas outras”, para concluir “contexto em que a Saúde Mental passa a ser compreendida como parte integrante e essencial da disciplina Ecobioética, com um papel permanente a desempenhar frente ao homem plenamente saudável”.
De fato, o “campo Psi” já realizou com êxito a mudança da abordagem ‘multidisciplinar’ para a ‘interdisciplinar’ que hoje é compreendida como fundamental. E o conceito de Ecobioética incita ao próximo movimento, que resulta em ‘transdisciplinariedade’. Universo de atuação que o sociólogo Edgard Morin denomina Complexidade.
Podemos dizer que é na trama da Complexidade que acontece esta dinâmica fundamentada nas suas diferentes perspectivas de avaliação. E por meio da Ecobioética, empreende-se a busca pela compreensão de tal Complexidade, partindo não de componentes de massificação determinados em protocolos formais (Bioética), mas da necessidade de interação entre cada indivíduo e suas diferentes manifestações de subjetividade.
E ao primar por compreender, preservar e desenvolver os seres humanos e seu meio ambiente, essa busca proposta pela Ecobioética admite considerar, simultaneamente, tanto as mudanças geofísicas, quanto às especificidades culturais, sociais, físicas, políticas e espirituais das populações, durante o atendimento empreendido através das assistências em suas diferentes dimensões.
Neste sentido estamos afirmando que SeSM é, de fato, promoção e manutenção de qualidade de vida para as pessoas, portanto para as populações. E é o momento em que podemos nos voltar para a Psicoterapia pensando-a para toda a sociedade, inclusive esse paciente e esse profissional, que vive em 2012.
Ao lidar com a sistemática ruptura de referências, como autodefesa emocional, os indivíduos tendem a minimizar os atos de violência em seu entorno, banalizando-os. Comportamento capaz de gerar transtornos psíquicos e aumentar a agressividade em relações cotidianas.
Tirar a vida de uma pessoa já não constrange, pelo menos quando se trata de preservar o patrimônio, imagem social ou a tranquilidade individual do ser humano do século XXI. Nossa sociedade incentiva à competição pela perspectiva do resultado e não dos méritos e princípios que geraram a conquista. Nesse contexto revelam-se, mais que situações de desrespeito à vida e inversão de valores, os sintomas que expõe a realidade desorientadora ou ‘disruptiva’ a que todos estamos submetidos. Condição que pode adoecer ou não, a partir da predisposição biológica, das experiências sociais e percepções subjetivas de cada indivíduo.
Impulsionada pelo processo internacional de acesso à informação, às tecnologias, à economia e à necessidade de interlocução entre culturas, nem sempre simples, a Vida no século XXI contempla amplo espectro de exposição a estímulos emocionais, condição que, por exemplo, não existia no início do século passado. E se por um lado, em alguns momentos a avaliação subjetiva que nos envolve parece tender à ansiedade, e até à angústia, por outra perspectiva, a humanidade nunca contou com tantos recursos e conhecimentos universalmente compartilhados para compreender a multiplicidade de alternativas que podem ser trabalhadas para estabelecermos a harmonia entre pessoas e meio ambiente.
Não se trata apenas de enxergar a realidade a partir de uma perspectiva otimista e menos desestabilizadora emocionalmente. Na prática, a Ecobioética nos convida a reconhecer as limitações humanas, ao mesmo tempo que apresenta o caminho da transdisciplinaridade. Ou seja, cooperação entre todas as atividades envolvidas na construção e aprimoramentos das realidades, como alternativa amadurecida, para não só combater o sofrimento emocional, como para construir qualidade de vida em escala muito maior.
Esse direcionamento propõe novas perspectivas, e uma possibilidade para desenvolver a Psicoterapia para o homem e para a sociedade. O potencial clínico que a Psicoterapia possui, poderá ser orientado para os tratamentos, intervenções e assistências direcionadas às populações, ampliando a abrangência de seus benefícios através de novos settings e enquadres.
Explanação apresentada pelo Dr. José Thome, durante a conferência de abertura da II Jornada ABRAP.
Realizada em São Paulo, em 28 de setembro de 2012.